
E naquele pedaço de bolo eu cravei as suas
iniciais com as minhas....
Um bolo de chocolate, com calda e pedaços médios de raspas por todos os lados, por toda a imensidão daquele pratinho de plástico. Prato descartável.
Miro as letras e algo me diz que não devo comer. Era como se... se comesse, eu pudesse devorar o que ele foi pra mim e a minha lembrança se desfaria em meu suco gástrico.
E naquele pedaço da casa eu me sentia como um solitário e dissecado pedaço de bolo de aniversário, daqueles com brigadeiros em volta, porém, partido e só em meio a tanta beleza fugaz.
Quando M morreu eu me senti assim. Não sabia ao certo qual era a importância dele em minha vida, sabia que ele existia. E sabia somente isso. E sabia que, quando vivo, ele não foi tão importante pra mim naqueles dias. Há anos atrás, com certeza.
Um suspiro a mais e volto à geladeira para mirar o bolo. Eu não tinha coragem de devorar a parte das iniciais, a dele em cima e a minha logo abaixo.
Era bom me deitar naquele colchão inflável daqueles que compramos em promoção no supermercado. Era macio e a cada parte que o meu corpo pesava contra ele, enchia o outro lado. Assim como quando colocamos a cobertura do bolo de aniversário e ele fica tão cheio que derrama pelas laterais. É...eu pensei em me deitar, mas volto à porta da geladeira, não a abro, encosto a minha cabeça no corrimão prateado. Suspiro. Suspiro novamente e dessa vez pronuncio um nome de anjo. Não consigo sequer abrir a geladeira de novo, não está cheia, mas a importância que ela tinha naquele momento é que, como em um caixão gélido, ela guardava o pedaço de bolo com a letra do meu nome abaixo do M.
Por fim não hesitei dessa vez. Talvez por saber que não havia qualquer outro indício de M naquela casa, nem em retratos ou folhetim fúnebre. Logo o garfo perfurou a massa fofa por cima separando as iniciais e derramando a calda negra sobre o prato branco. Aquele líquido invadia o local e roubava-lhe toda a candura, tomando tudo o que havia de puro na breve vida daquela peça descartável, assim como Paint it Black invadiu a minha mente quando ouvi Rolling Stones.
Quanto mais dilacerava o bolo, mais o branco se sujava. Quanto mais o arrastava junto ao talher, mais os seus fragmentos se separavam. E aquele ato contínuo girou em minha cabeça como se tratasse de um homicídio. Um crime nada perfeito, pois havia vestígios por todos os lados. E foi com a culpa de uma criminosa que deixei cair o prato sobre a mesa ao tentar esconder o rosto entre os meus dedos largos e disformes. Suspirei quedando o meu corpo para trás e enterrando os meus quadris para dentro da mesa, reduzindo a minha existência à uma pequenice no meio daquela sala-cozinha. Imaginei como seria se fosse apenas uma formiga. E ri ao descobrir como as formigas eram felizes por essa pequenice, pois era mínima a ponto de passar despercebida caso cometesse um crime, por exemplo, de furtar algo. Mas logo cessei o meu riso, afinal elas eram vilãs sim, pois furtam açúcar e certamente não titubeariam em consumir aquele bolo. Desisti de ser formiga.
Ergui o meu tronco na cadeira e mirei o nada até encontrar a página de jornal que falava a respeito de preços de geladeira. Não imaginava quem poderia comprar tantas geladeiras, sendo que no final a sua única função é conservar alimentos. Ou lembranças como geralmente faço. Se eu fosse um fabricante desses modelos criaria um revolucionário sistema de conservação de imagens boas que vivemos para poder contemplar ali, a olhos vistos, em um globo de gelo, os momentos mais importantes da minha vida. Talvez não vendesse, já que lembranças boas servem para aquecer os sentimentos envolvidos, porém eu queria mesmo congelá-las em minha memória... em meu tempo.
E continuei afogada naquela imensidão rosa - goiaba da minha sala-cozinha. Os olhos passeavam novamente em devaneio e logo caí em mim, pois lembrei que aquele era o jornal. É, esse mesmo, foi por ele que eu soube da morte de M. Foi um instrumento de valor único para mim à minutos atrás para depois esquecer de sua importância. Me senti alguém realmente ruim por não dar o real merecimento às coisas e, por isso, procurei, como geralmente fazem as pessoas arrependidas por amor, da nota oficial do falecimento dele. Porém o meu desespero parecia se consumir cada vez mais, pois quanto mais eu procurava, mais difícil se tornava encontrá-lo. Imaginei que, assim como os mortos, as notícias também desaparecem. Mas bem que essa podia demorar um pouco a sumir, droga!
- É...está aqui!
Foi um alívio tão grande que quase agradeci a Deus por isso. Sorri satisfeita por achá-lo, mas ao mesmo tempo a notícia trazia um vazio como se M pudesse desaparecer eternamente da minha geladeira. Então olhei o bolo e as iniciais permaneciam lá, mesmo que separadas. E fitei a notícia que outrora me fez sentir uma boba por encontrá-la. Tudo aquilo despedaçava como pétalas de flores em um redemoinho de bem-me-quer, mal-me-quer, bem-me-quer, mal-me-quer. Mas não havia flores. Nem as do seu velório. Havia apenas um jornal e a imagem de que aquela notícia seria um verdadeiro bem-me-quer, mal-me-quer, que estaria julgando o que realmente sentia e senti por M. E as suas pétalas caiam como os farelos do bolo de festa sobre a mesa, regaladas de convidados pequeninos que sepultariam, por fim, as memórias impossíveis de serem guardadas em minha geladeira do tempo. Mas se eu não pudesse congelá-las ao menos comeria e M estaria guardado a salvo em meu ser. O meu suco gástrico não o consumiria afinal se é meu líquido, eu governo e declaro que estaria permanentemente proibida a morte de M dentro de mim.
Um bolo de chocolate, com calda e pedaços médios de raspas por todos os lados, por toda a imensidão daquele pratinho de plástico. Prato descartável.
Miro as letras e algo me diz que não devo comer. Era como se... se comesse, eu pudesse devorar o que ele foi pra mim e a minha lembrança se desfaria em meu suco gástrico.
E naquele pedaço da casa eu me sentia como um solitário e dissecado pedaço de bolo de aniversário, daqueles com brigadeiros em volta, porém, partido e só em meio a tanta beleza fugaz.
Quando M morreu eu me senti assim. Não sabia ao certo qual era a importância dele em minha vida, sabia que ele existia. E sabia somente isso. E sabia que, quando vivo, ele não foi tão importante pra mim naqueles dias. Há anos atrás, com certeza.
Um suspiro a mais e volto à geladeira para mirar o bolo. Eu não tinha coragem de devorar a parte das iniciais, a dele em cima e a minha logo abaixo.
Era bom me deitar naquele colchão inflável daqueles que compramos em promoção no supermercado. Era macio e a cada parte que o meu corpo pesava contra ele, enchia o outro lado. Assim como quando colocamos a cobertura do bolo de aniversário e ele fica tão cheio que derrama pelas laterais. É...eu pensei em me deitar, mas volto à porta da geladeira, não a abro, encosto a minha cabeça no corrimão prateado. Suspiro. Suspiro novamente e dessa vez pronuncio um nome de anjo. Não consigo sequer abrir a geladeira de novo, não está cheia, mas a importância que ela tinha naquele momento é que, como em um caixão gélido, ela guardava o pedaço de bolo com a letra do meu nome abaixo do M.
Por fim não hesitei dessa vez. Talvez por saber que não havia qualquer outro indício de M naquela casa, nem em retratos ou folhetim fúnebre. Logo o garfo perfurou a massa fofa por cima separando as iniciais e derramando a calda negra sobre o prato branco. Aquele líquido invadia o local e roubava-lhe toda a candura, tomando tudo o que havia de puro na breve vida daquela peça descartável, assim como Paint it Black invadiu a minha mente quando ouvi Rolling Stones.
Quanto mais dilacerava o bolo, mais o branco se sujava. Quanto mais o arrastava junto ao talher, mais os seus fragmentos se separavam. E aquele ato contínuo girou em minha cabeça como se tratasse de um homicídio. Um crime nada perfeito, pois havia vestígios por todos os lados. E foi com a culpa de uma criminosa que deixei cair o prato sobre a mesa ao tentar esconder o rosto entre os meus dedos largos e disformes. Suspirei quedando o meu corpo para trás e enterrando os meus quadris para dentro da mesa, reduzindo a minha existência à uma pequenice no meio daquela sala-cozinha. Imaginei como seria se fosse apenas uma formiga. E ri ao descobrir como as formigas eram felizes por essa pequenice, pois era mínima a ponto de passar despercebida caso cometesse um crime, por exemplo, de furtar algo. Mas logo cessei o meu riso, afinal elas eram vilãs sim, pois furtam açúcar e certamente não titubeariam em consumir aquele bolo. Desisti de ser formiga.
Ergui o meu tronco na cadeira e mirei o nada até encontrar a página de jornal que falava a respeito de preços de geladeira. Não imaginava quem poderia comprar tantas geladeiras, sendo que no final a sua única função é conservar alimentos. Ou lembranças como geralmente faço. Se eu fosse um fabricante desses modelos criaria um revolucionário sistema de conservação de imagens boas que vivemos para poder contemplar ali, a olhos vistos, em um globo de gelo, os momentos mais importantes da minha vida. Talvez não vendesse, já que lembranças boas servem para aquecer os sentimentos envolvidos, porém eu queria mesmo congelá-las em minha memória... em meu tempo.
E continuei afogada naquela imensidão rosa - goiaba da minha sala-cozinha. Os olhos passeavam novamente em devaneio e logo caí em mim, pois lembrei que aquele era o jornal. É, esse mesmo, foi por ele que eu soube da morte de M. Foi um instrumento de valor único para mim à minutos atrás para depois esquecer de sua importância. Me senti alguém realmente ruim por não dar o real merecimento às coisas e, por isso, procurei, como geralmente fazem as pessoas arrependidas por amor, da nota oficial do falecimento dele. Porém o meu desespero parecia se consumir cada vez mais, pois quanto mais eu procurava, mais difícil se tornava encontrá-lo. Imaginei que, assim como os mortos, as notícias também desaparecem. Mas bem que essa podia demorar um pouco a sumir, droga!
- É...está aqui!
Foi um alívio tão grande que quase agradeci a Deus por isso. Sorri satisfeita por achá-lo, mas ao mesmo tempo a notícia trazia um vazio como se M pudesse desaparecer eternamente da minha geladeira. Então olhei o bolo e as iniciais permaneciam lá, mesmo que separadas. E fitei a notícia que outrora me fez sentir uma boba por encontrá-la. Tudo aquilo despedaçava como pétalas de flores em um redemoinho de bem-me-quer, mal-me-quer, bem-me-quer, mal-me-quer. Mas não havia flores. Nem as do seu velório. Havia apenas um jornal e a imagem de que aquela notícia seria um verdadeiro bem-me-quer, mal-me-quer, que estaria julgando o que realmente sentia e senti por M. E as suas pétalas caiam como os farelos do bolo de festa sobre a mesa, regaladas de convidados pequeninos que sepultariam, por fim, as memórias impossíveis de serem guardadas em minha geladeira do tempo. Mas se eu não pudesse congelá-las ao menos comeria e M estaria guardado a salvo em meu ser. O meu suco gástrico não o consumiria afinal se é meu líquido, eu governo e declaro que estaria permanentemente proibida a morte de M dentro de mim.
O garfo prateado fincou na inicial M assim como a minha mão tratou de cobri-lo, não mais com chocolate, mas com aquelas pétalas de jornal que relatavam a sua morte. E por fim abri a minha boca, não para a sepultá-lo, mas para memorizá-lo eternamente como se na minha condição de vilã eu pudesse conseguir uma espécie de salvação ao ter a ideia de que ele ficaria bem. Mastiguei uma, duas, sessenta vezes até senti-lo úmido o bastante para engoli-lo ao sabor de letras digitadas às pressas e ao gosto doce e amável de chocolate.