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sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Pétalas de jornal


E naquele pedaço de bolo eu cravei as suas iniciais com as minhas.... 


Um bolo de chocolate, com calda e pedaços médios de raspas por todos os lados, por toda a imensidão daquele pratinho de plástico. Prato descartável. 


Miro as letras e algo me diz que não devo comer. Era como se... se comesse, eu pudesse devorar o que ele foi pra mim e a minha lembrança se desfaria em meu suco gástrico. 

E naquele pedaço da casa eu me sentia como um solitário e dissecado pedaço de bolo de aniversário, daqueles com brigadeiros em volta, porém, partido e só em meio a tanta beleza fugaz. 

Quando M morreu eu me senti assim. Não sabia ao certo qual era a importância dele em minha vida, sabia que ele existia. E sabia somente isso. E sabia que, quando vivo, ele não foi tão importante pra mim naqueles dias. Há anos atrás, com certeza. 


Um suspiro a mais e volto à geladeira para mirar o bolo. Eu não tinha coragem de devorar a parte das iniciais, a dele em cima e a minha logo abaixo. 


Era bom me deitar naquele colchão inflável daqueles que compramos em promoção no supermercado. Era macio e a cada parte que o meu corpo pesava contra ele, enchia o outro lado. Assim como quando colocamos a cobertura do bolo de aniversário e ele fica tão cheio que derrama pelas laterais.  É...eu pensei em me deitar, mas volto à porta da geladeira, não a abro, encosto a minha cabeça no corrimão prateado. Suspiro. Suspiro novamente e dessa vez pronuncio um nome de anjo. Não consigo sequer abrir a geladeira de novo, não está cheia, mas a importância que ela tinha naquele momento é que, como em um caixão gélido, ela guardava o pedaço de bolo com a letra do meu nome abaixo do M. 

Por fim não hesitei dessa vez. Talvez por saber que não havia qualquer outro indício de M naquela casa, nem em retratos ou folhetim fúnebre. Logo o garfo perfurou a massa fofa por cima separando as iniciais e derramando a calda negra sobre o prato branco. Aquele líquido invadia o local e roubava-lhe toda a candura, tomando tudo o que havia de puro na breve vida daquela peça descartável, assim como Paint it Black invadiu a minha mente quando ouvi Rolling Stones. 


Quanto mais dilacerava o bolo, mais o branco se sujava. Quanto mais o arrastava junto ao talher, mais os seus fragmentos se separavam. E aquele ato contínuo girou em minha cabeça como se tratasse de um homicídio. Um crime nada perfeito, pois havia vestígios por todos os lados. E foi com a culpa de uma criminosa que deixei cair o prato sobre a mesa ao tentar esconder o rosto entre os meus dedos largos e disformes.  Suspirei quedando o meu corpo para trás e enterrando os meus quadris para dentro da mesa, reduzindo a minha existência à uma pequenice no meio daquela sala-cozinha. Imaginei como seria se fosse apenas uma formiga. E ri ao descobrir como as formigas eram felizes por essa pequenice, pois era mínima a ponto de passar despercebida caso cometesse um crime, por exemplo, de furtar algo. Mas logo cessei o meu riso, afinal elas eram vilãs sim, pois furtam açúcar e certamente não titubeariam em consumir aquele bolo. Desisti de ser formiga.

 
Ergui o meu tronco na cadeira e mirei o nada até encontrar a página de jornal que falava a respeito de preços de geladeira. Não imaginava quem poderia comprar tantas geladeiras, sendo que no final a sua única função é conservar alimentos. Ou lembranças como geralmente faço. Se eu fosse um fabricante desses modelos criaria um revolucionário sistema de conservação de imagens boas que vivemos para poder contemplar ali, a olhos vistos, em um globo de gelo, os momentos mais importantes da minha vida. Talvez não vendesse, já que lembranças boas servem para aquecer os sentimentos envolvidos, porém eu queria mesmo congelá-las em minha memória... em meu tempo. 


E continuei afogada naquela imensidão rosa - goiaba da minha sala-cozinha. Os olhos passeavam novamente em devaneio e logo caí em mim, pois lembrei que aquele era o jornal. É, esse mesmo, foi por ele que eu soube da morte de M. Foi um instrumento de valor único para mim à minutos atrás para depois esquecer de sua importância. Me senti alguém realmente ruim por não dar o real merecimento às coisas e, por isso, procurei, como geralmente fazem as pessoas arrependidas por amor, da nota oficial do falecimento dele. Porém o meu desespero parecia se consumir cada vez mais, pois quanto mais eu procurava, mais difícil se tornava encontrá-lo. Imaginei que, assim como os mortos, as notícias também desaparecem. Mas bem que essa podia demorar um pouco a sumir, droga! 


- É...está aqui! 


Foi um alívio tão grande que quase agradeci a Deus por isso. Sorri satisfeita por achá-lo, mas ao mesmo tempo a notícia trazia um vazio como se M pudesse desaparecer eternamente da minha geladeira. Então olhei o bolo e as iniciais permaneciam lá, mesmo que separadas. E fitei a notícia que outrora me fez sentir uma boba por encontrá-la. Tudo aquilo despedaçava como pétalas de flores em um redemoinho de bem-me-quer, mal-me-quer, bem-me-quer, mal-me-quer. Mas não havia flores. Nem as do seu velório. Havia apenas um jornal e a imagem de que aquela notícia seria um verdadeiro bem-me-quer, mal-me-quer, que estaria julgando o que realmente sentia e senti por M. E as suas pétalas caiam como os farelos do bolo de festa sobre a mesa, regaladas de convidados pequeninos que sepultariam, por fim, as memórias impossíveis de serem guardadas em minha geladeira do tempo. Mas se eu não pudesse congelá-las ao menos comeria e M estaria guardado a salvo em meu ser. O meu suco gástrico não o consumiria afinal se é meu líquido, eu governo e declaro que estaria permanentemente proibida a morte de M dentro de mim. 

O garfo prateado fincou na inicial M assim como a minha mão tratou de cobri-lo, não mais com chocolate, mas com aquelas pétalas de jornal que relatavam a sua morte. E por fim abri a minha boca, não para a sepultá-lo, mas para memorizá-lo eternamente como se na minha condição de vilã eu pudesse conseguir uma espécie de salvação ao ter a ideia de que ele ficaria bem. Mastiguei uma, duas, sessenta vezes até senti-lo úmido o bastante para engoli-lo ao sabor de letras digitadas às pressas e ao gosto doce e amável de chocolate.




quinta-feira, 8 de julho de 2010

Partida do Xadrez


A Partida do Xadrez

E foi buscando a música perfeita que me encontrei musicando algo sobre você. Há dias procurava esse chorinho em playlists diversas e uma angústia me consumia. Acreditava que a música fosse o estratagema perfeito para poder escrever sobre essa verdade que sinto. Sim, é a mais pura verdade, olhava cds e videoclips inteiros procurando o seu rosto. Mas só via uma Dama. E foi assim que tudo começou.

A Dama sempre foi a peça maior do xadrez. Não seria por menos que ela seria uma dama, uma mulher sagaz e forte, a mais inteligente do tabuleiro. Mas mesmo sendo tão altiva, ela não é alheia ao contato com peões, cavalos e bispos. E até as torres, tão limitadas com os seus movimentos retos.


A Dama valsa com leveza sobre o tabuleiro se exibindo com audácia no campo adversário. Talvez as damas fossem muito mais estratégicas que os cavalheiros, pois abusam de forma perita para conseguir o que desejam. Quiçá essa nobre peça possa até mesmo ludibriar um enxadrista sobre a sua posição, ocultando possibilidades e fazendo-o acreditar que possa ser poderoso. Uma maneira clichê de dizer o quão as mulheres são poderosas e o quanto elas podem trazer risco. Ou são inocentes atrizes.


Em uma partida de Maio a mais demorada das batalhas foi travada. Talvez fosse somente um jogo psicológico de xadrez humano, mas aquela linguagem que fluía como música de ambos os corpos dizia o contrário. Era uma canção que se iniciou lenta e foi tomando propulsões avassaladoras até se encontrarem frente a frente em um tabuleiro. Rainha e Torre. Ao redor, vários peões prestes a serem descartados em um lance. Ou seriam apenas expectadores que torciam pela vitória de uma das peças?


A audácia da Rainha poderia intimidar a Torre pela sua ousadia. Não sentia medo, era absoluta em seu reino fantasioso e não temia ser ela mesma. Sequer temia o que o tabuleiro pensava a seu respeito. Triunfava com o seu conhecimento e desafiava a quem quer que fosse.

Mas a sabedoria da Dama foi anulada pela paciência da Torre.

Uma nota mais alta ressoou de forma que o ritmo da música fosse interrompido. O rock da Dama foi substituído por violões em Choro. E aquele Choro nº1 foi invadindo os tímpanos da Rainha e atrapalhando os seus movimentos. Mas, por mais que os seus ataques fossem bloqueados, aqueles acordes dedilhados pela Torre a atraia docilmente. Quem diria! Ela, a todo poderosa, sendo contra-atacada da forma mais sutil e inteligente possível?! Era impossível de acreditar!


A audaciosa Dama sentia medo. Mais parecia a personificação do Congresso Internacional do Medo, de Drummond. Mas não quereria flores amarelas e medrosas. Não. Ansiava pelo aroma dócil e abrasador do sândalo e almíscar com notas orientais. Aroma de um sentimento em linha reta. No entanto, as únicas notas que possuía eram as notas do violão dedilhado e distante da Torre. Se morresse, seria de angústia. Mas a vontade de que aqueles dedos magros parassem de tocar o instrumento e a fizesse música era tamanha que lhe causava um sofrimento maior.

A corajosa Dama recuou frente a esse sentimento. Corajosa por que outrora explicitou toda a sua audácia feminina em verbos no Pretérito mais que perfeito. Antes tivesse feito em um tempo Presente insistente mais que audaz antes perfeito. Ou apenas calasse a sua ousadia e ouvisse com atenção as cordas do Choro nº 1. Talvez essa última possibilidade permitisse tapar sua caixa acústica psicológica ao som das masculinas cordas vocálicas e aí sim venceria o jogo. Mas o seu recuo possibilitou a partida para junto das outras peças mortas e negras, anteriormente capturadas. Ela se esquivou frente ao que poderia ouvir. Precisava eliminar de uma vez por todas aquela agonia, nem que para isso se sacrificasse. Nem que para isso fugisse para ouvir um sim. Ou um outro som.